domingo, 6 de outubro de 2019

Hemorragia Interna


A pior ferida não é o corte na pele. 
Não é nem o rasgo na barriga. 
As piores feridas não são desse tipo de ferimento ao qual as pessoas socorrem imediatamente. Remedia-se, remenda-se, atende-se ao dano com a urgência devida. E elas saram. 
Eventualmente deixam cicatrizes, mas saram.


A pior ferida é a hemorragia interna. A dor escondida, não tratada, mas que ainda assim sangra dentro do ser sem que se note, escoando-lhe a vida aos poucos.


Acabou-se um capítulo da minha vida e eu não o chorei.
Passei sete anos em sofrimento, e nem esses anos chorei.
E diversas feridas que deviam ter eclodido como vulcões ficaram sob a pele, machucando lá dentro, para não serem mais vistas. Eram bolsões magmáticos sob a crosta terrestre.
A relação acabou. E disse que tenho de seguir em frente, não olhar para trás, não ficar lamentando o que houve, não chorar, ainda que tardiamente, suas feridas. E elas continuaram sangrando sem serem vistas.

Desde então tenho vivido a um passo da borda. Não apenas como um visitante ocasional do perigo, mas alguém que montou acampamento a meio passo do precipício. Batendo os braços o suficiente apenas para manter a cabeça fora d’água.

E a vida aos poucos se esvai e não se tem forças para repô-la. E quando se fala em voz alta do passado a respectiva mágoa, como se anunciada, se faz avizinhar embargando a voz, umedecendo os olhos, fechando a garganta. Alguma coisa dói. E essa dor encontra eco dentro de mim, em feridas estagnadas muito antigas. O nervo exposto que subitamente volta a doer. Uma comunhão de dores que, na escuridão do ser, deram-se as mãos e clamaram por atenção.

Liguei para o CVV. 

Era o quinquagésimo da fila.
E a fila de espera andava. 
E naquela hora eu me senti doente, como a pessoa com resfriado que entra em um hospital e subitamente se percebe doente. A fila andava.
Naquele momento, a minha hemorragia interna ia subindo pelas camadas do meu corpo, ia chegando perto da minha pele. Naquela hora mil vulcões entraram em erupção dentro de mim querendo, cada um, um pouco da atenção que lhe foi negada durante muitos anos.

A pessoa atendeu.
Eu não conseguia falar com ela.
Eu era apenas choro e soluços.
Era apenas desespero e lágrimas.
Eu apenas me sentia só.
Eu sentia cada ferida subindo.
E chorei, chorei a muitas delas. Senão a todas, mas muitos velórios foram feitos naquela noite e muitos homens bons foram enterrados, boas versões de Josiel de outrora, de James.

A atendente não falou muito. Apenas escutava e ecoava o que eu dizia. E era exatamente do que eu precisava. Era aquilo que eu dava aos outros quando lhes escutava os medos, as confissões na escada de incêndio do prédio aonde trabalhávamos. E as pessoas saravam. E iam embora. Casamentos chegaram a ocorrer, e parte da culpa era minha. E eu não fui convidado.

Minto ao dizer que não houvesse expectativa, alguma sempre existiu. A expectativa de que uma hora iria chegar minha vez, e essa dor que eu também tenho possa ser tratada, que alguém lhe passasse unguento, ou que apenas olhasse para ela e dissesse: “Isso também passará. Elas vão sarar. Não pode chover eternamente. Não pode ser noite para sempre.”

Eu era confessor, eu era um líder, eu inspirava pessoas. Mas elas se inspiravam pela fachada de um prédio condenado e, por muitas vezes, perigava ruir.

Eu cresci desde um barraco pobre em uma favela de periferia até ter patrimônio muito maior do que qualquer um na minha família. Eu cresci para ter projetos implantados em empresas como Vale do Rio Doce, Volkswagen, Açominas e o controle de tráfego nos armazéns de Cumbica têm um dedo meu.

Muitas pessoas se guiaram por essa chama. Mas não imaginam quão caro ela custa. De quanta lenha é necessária para mantê-la acesa e que se não houver nada para queimar, serei eu mesmo me pondo em chamas. Apenas para mantê-la acesa.

Para que essa vida, por vezes detestável, siga em frente. Ainda que a vida seja uma ordem. Ainda que a dor exorcizada em verso seja transmutada em algo que seja apenas resignação, é o que basta. Será o suficiente até amanhã.


Essas pessoas que eu ajudo não sabem o que estão fazendo. Não sabem que, sem querer, estão salvando minha vida. E que um dia se vão… levando uma parte de mim.



Os Ombros Suportam o Mundo.


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


- Carlos Drummond de Andrade

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